OS CONTRATOS DE REVENUE SHARE NA INDÚSTRIA DE GAMES E OS CUIDADOS COM SUA TRIBUTAÇÃO

André Schenini Moreira
5 min readJan 27, 2021

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Imagem do The Thieves Guild do Elder Scrolls Online

Jogos eletrônicos são produtos compostos por uma miríade de criações: argumento literário/enredo, artes gráficas, trilha e efeitos sonoros, animações, mecânicas de jogabilidade, códigos fonte, etc. Não suficiente essa rica combinação, diversas são as plataformas em que games podem ser explorados (PC, Playstation, Xbox, Nintendo Switch, iOs, Android, etc.), sendo usualmente necessária a realização de adequações na programação do jogo para que ele rode em cada sistema diferente.

Finalizada a etapa de desenvolvimento, ainda é preciso publicá-lo e vendê-lo, expertise que depende tanto das habilidades comerciais e do conhecimento da dinâmica desse mercado (e de contatos), quanto da qualidade do game desenvolvido. Nesta etapa, as chamadas publishers exercem papel essencial, em especial para desenvolvedoras que não possuem uma estrutura operacional capaz de executar essas atividades comerciais.

Por tal razão, não raro os estúdios de desenvolvimento de jogos eletrônicos, que muitas vezes são especializados em determinados elementos desses produtos criativos, celebram parcerias com outras empresas e profissionais para que cada um contribua com a sua especialidade em um projeto específico. Em grande parte dos casos, a figura contratual escolhida para esse negócio é o Contrato de Revenue Share / Sharing, também chamado de contrato de repartição de receitas, divisão de lucros, etc.

O propósito desse contrato é que cada participante do projeto contribua com sua expertise, o que será feito mediante o aporte de horas técnicas de sua equipe, de ativos de seu portfolio (licenças, códigos, etc.), dentre outras possíveis contribuições (aporte financeiro, divulgação na mídia, acesso a lojas virtuais, serviços de gerenciamento da comunidade do jogo, etc.). Em contrapartida, define-se que cada um dos participantes receberá uma parte das receitas auferidas com a exploração comercial do game.

Pensando superficialmente, os contratos de revenue sharing parecem algo muito fácil de ser concebido (desde que todos concordem na participação que cada um terá na receita do projeto), mas, na prática, e principalmente no mundo jurídico, nada é tão fácil quanto parece.

O primeiro empecilho é que esse contrato, de natureza tipicamente civil-empresarial, não encontra nenhuma previsão legal no ordenamento brasileiro, o que não significa, obviamente, que ele não possa existir1. A ausência de um parâmetro legal específico, apesar de trazer certa insegurança, também confere maior autonomia às partes na celebração dos termos de um contrato, o que é especialmente reforçado quando consideramos que a recente Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.784/2019) enaltece a autonomia das partes na construção de seus acordos empresariais2.

O problema, todavia, está no aceite de determinada modelagem contratual pelo Estado, especialmente pelas autoridades fiscais (vide o que diz o art. 123 do Código Tributário Nacional3).

Usualmente, dentro desse modelo de revenue share, bastante explorado no mercado indie de jogos eletrônicos, uma das empresas participantes fica responsável pelo recebimento da integralidade dos valores atinentes à comercialização do jogo. É essa pessoa jurídica, portanto, que fatura (e tributa) a receita oriunda da exploração daquele produto. A questão que surge é sobre o repasse do share a cada uma das partes que integram o contrato, pois, ainda que pareça, este repasse não é uma efetiva distribuição de lucros.

Os lucros distribuídos, analisados sob a ótica jurídica, são tidos como uma remuneração paga aos sócios de uma empresa pelos aportes/investimentos feitos no negócio. Ou seja, lucros somente podem ser pagos àqueles que compõem o quadro societário de uma sociedade empresarial — o que não ocorre em um projeto no formato de revenue share.

Logo, à primeira vista, para a devida operacionalização tributária de contratos de revenue share, os caminhos a seguir seriam os seguintes:

(i) uma empresa fatura e tributa as receitas de exploração comercial do jogo, realizando o repasse dos valores às outras partes do contrato por meio da contratação de serviços ou pelo licenciamento de ativos destas (as quais terão que tributar tal receita conforme a operação declarada); ou

(ii) todas as empresas do contrato faturam e tributam o valor relativo a sua participação específica nas receitas do projeto, emitindo uma nota fiscal cada ao comprador do game;

Na primeira opção haverá, muito provavelmente, uma maior carga tributária sobre toda a operação. Enquanto na segunda, teremos um ônus considerável de gestão contábil e documental dependendo do número de participantes, sem contar que muitas lojas virtuais exigirão que apenas uma empresa seja designada para recebimento dos valores oriundos das vendas.

Engana-se, todavia, quem pensa que esses caminhos tornam inviável a operação de um contrato do tipo — o que definirá isso será o potencial do projeto a ser explorado . O que importa é ter em mente esses cenários para que, na negociação do contrato de revenue share, esses custos (fiscais e/ou operacionais) sejam considerados pelas partes para a definição do modelo a ser seguido, bem como para a determinação do share e da responsabilidade de cada um dos participantes.

Ressalte-se, oportunamente, que o contrato de revenue share não é o único modelo contratual útil para um negócio com essas características. Existem algumas figuras jurídicas típicas e atípicas que podem ser consideradas para projetos desse tipo, como o consórcio empresarial, a sociedade por propósito específico (SPE) e a sociedade em conta de participação (SCP). Estas opções devem ser consideradas com base no caso concreto de cada um, pois em determinadas situações elas podem ser mais benéficas (ex.: o uso da SCP quando há um investidor de um lado e uma desenvolvedora de outro), já em outras um contrato de revenue share bem desenhado mostrar-se-á mais vantajoso.

O contrato de revenue share para o desenvolvimento e exploração comercial de jogos eletrônicos é, sem dúvida, um formato aceito pelo nosso ordenamento legal. Contudo, quando falamos do tratamento tributário a ele empregado, tal operação não será tão fácil quanto o conceito de “repartição de receitas” sugere ser.

1 Código Civil: Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.

2 Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:

VIII — ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública;

3 Art. 123. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes.

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André Schenini Moreira
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Written by André Schenini Moreira

Brazilian Lawyer in tech and creative industries (IT, games and esports). In the free time, gamer and fantasy reader. @andre_de_os / andre@feoliemoreira.com.br

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